Tuesday, September 06, 2005


In memoriam James Dean (1931-1955)
Uma história americana

Salinas (Califórnia), Setembro de 1955


Num bar à beira da estrada, Garfield Spencer tem pouco que fazer, mas muito que contar. Limpa o balcão corrido de fórmica e sonha com os domingos à tarde, em que se permite fechar a loja e ir a Salinas, para uma matinée no cinema e ser servido, uma vez por semana que seja. Nos outros dias é ele que serve cervejas e hot dogs a quem passa, porque, estabelecido à beira duma estrada nacional, não tem habitués para além do pó e do calor que sufoca a Califórnia – tão eterno como as neves do Kilimanjaro. Mas a falta de familiaridade que sente quando mais fere a solidão é largamente compensada pela aura de excepcionalidade em que, por momentos fugazes, se viu envolvido. Numa tarde impiedosa dum Verão de há muito tempo, pouco depois de estrear As Vinhas da Ira (com Henry Fonda), serviu um chá gelado a John Steinbeck. Permitiu-se cumprimentar o escritor. O sorriso distraído que este lhe devolveu foi suficientemente estimulante para que Garfield Spencer, homem de poucas letras, lhe comprasse os livros.
Foi, aliás, quando lia os dois grossos volumes de A Leste do Paraíso (decerto sugestionado pela notícia de que também este romance de Steinbeck viria a ser adaptado ao cinema) que lhe entrou pela porta do bar um jovem louro, vestido e penteado à moda de Marlon Brando. Viera de moto e demonstrava uma estranha ansiedade. Como se lhe faltasse uma parte de si mesmo que jamais encontraria, mesmo que nessa demanda empenhasse todo o seu esforço. Fumava muito e, de si, disse apenas que a Warner Brothers o tinha chamado para um filme muito importante. Era actor, mas até aí só trabalhara em Nova Iorque, onde Garfield Spencer nunca estivera. Poucas semanas depois este veria na Moviegoer um retrato deste rapaz impaciente. Chamava-se James Dean e o filme que o trouxera à Califórnia era mesmo importante – tratava-se de A Leste do Paraíso, que Elia Kazan iria realizar segundo o romance do outro cliente excepcional que Garfield servira.
Uma coincidência sincronística, teria concluído se fosse dado a leituras filosóficas, mas, como não era, apenas concluiu, auto-complacente, que a Califórnia se transformara no centro do mundo, para o qual confluíam as personalidades mais fulgurantes. A partir do momento histórico em que decorreu essa descoberta, quem, na desolação da estrada, se detivesse no bar solitário de Garfield Spencer era surpreendido pelo retrato, iluminado a lâmpada fluorescente, da mais jovem «estrela» de Hollywood. Como num altar feito de gelo.
- É um dos meus melhores clientes – mentia sem maldade. Garfield Spencer, já adiantado na casa dos 30 anos, passou rapidamente do culto à imitação. Nas horas que lhe sobravam, entre os copos que servia a desconhecidos, voltava-se para o espelho e copiava o penteado do ídolo. Muito curto sobre as orelhas, com a popa levantada. Passou a acender uns cigarros nos outros e a vestir a T-Shirt branca que lhe acentuava a barriguinha que os actores de Hollywood não tinham. Ninguém imaginava Garfield Spencer a declarar, à imagem do ídolo, que o importante era viver depressa, morrer jovem e ter um belo funeral, mas a verdade é que ninguém se dava ao trabalho de imaginar Garfield Spencer. Na tarde de 30 de Setembro de 1955, não muito longe daquele bar, o actor ficou para sempre igual à imagem do altar. Entregara o gato Marcus aos cuidados de uma amiga e partira para uma corrida de automóveis em Salinas. Ao pôr-do-sol, num cruzamento, o tempo deteve-se, como no momento antes dum duelo de western. James Dean morreu imediatamente, ao volante dum Porsche cintilante. Tinha 24 anos e deixava por estrear dois dos seus três únicos filmes – Fúria de Viver e O Gigante, ainda inacabado. No plateau, Elizabeth Taylor desmaiou e a produção afligiu-se – o que fazer com as cenas que o actor não chegara a filmar?
A poucos quilómetros do cenário da tragédia, refulgia o altar montado por Garfield Spencer. Aquele rosto jamais seria sulcado por rugas, o cigarro que lhe pendia do lábio jamais se apagaria, a expressão trocista pareceu adquirir uma inocência que só dependia do grau de comiseração sentido por quem olhava. «E foi o único a morrer entre todos os que iam nos dois carros», comentava, pesaroso, Garfield aos que, durante uma refeição rápida, pousavam os olhos no altar. Um desses clientes não se deteve, no entanto, em conversas compungidas. Pediu um hambúrguer com muita cebola e espiou, sem uma palavra, os gestos do empregado – o modo como defendia a chama do isqueiro, os dedos com que segurava no cigarro, o olhar límpido, a T-Shirt negra e justa.
Apesar de ser um homem cândido, Garfield Spencer sentiu que estava a ser observado. Talvez este fosse um cliente de há muito tempo, curioso com as mudanças que o tempo lhe trouxera. Ou talvez tivesse vindo porque alguém recomendara. Depois do hambúrguer, este cliente habituado a não desviar o olhar, confirmou-lhe parte das suspeitas. Já de pé, voltou a limpar os lábios e disparou:

- Tinham razão. Você é o perfeito sósia de James Dean. Uns anos mais velho, mas nada que não se possa resolver.

Estendeu-lhe o cartão de visita com o logótipo da Warner Brothers. Dias depois, como num passe de mágica, Garfield Spencer viu-se num plateau, fisicamente não muito longe de Elizabeth Taylor ou Rock Hudson, para terminar as cenas que o ídolo não chegara a filmar. Encadeado com o poder dos holofotes, repetiu escrupulosamente quanto lhe foi ordenado pelo realizador George Stevens, sem chegar a compreender toda a extensão do que lhe acontecera. Pagaram-lhe o combinado e comprou um carro melhor, mas o seu nome nunca figurou no genérico.

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