Friday, July 29, 2005



Donas de casa desesperadas, parte I

E agora a sério...
Belinda Carlisle escreveu; Marianne Faithfull cantou no álbum Broken English (datado de 1979) e, muito a propósito, Ridley Scott escolheu-a para banda sonora de Thelma e Louise. Nunca foi fácil o confronto das mulheres adultas com os seus sonhos de meninas. Existem, na Net, vários fóruns sobre esta canção, nomeadamente sobre o seu desfecho.


The balad of Lucy Jordan

The morning sun touched lightly on the eyes of lucy jordan/
In a white suburban bedroom in a white suburban town/
As she lay there ’neath the covers dreaming of a thousand lovers/
Till the world turned to orange and the room went spinning round./
At the age of thirty-seven she realised she’d never/
Ride through paris in a sports car with the warm wind in her hair./

So she let the phone keep ringing and she sat there softly singing/
Little nursery rhymes she’d memorised in her daddy’s easy chair./
Her husband, he’s off to work and the kids are off to school,/
And there are, oh, so many ways for her to spend the day./
She could clean the house for hours or rearrange the flowers/
Or run naked through the shady street screaming all the way./
At the age of thirty-seven she realised she’d never/
Ride through paris in a sports car with the warm wind in her hair/
So she let the phone keep ringing as she sat there softly singing/
Pretty nursery rhymes she’d memorised in her daddy’s easy chair.
The evening sun touched gently on the eyes of lucy jordan/
On the roof top where she climbed when all the laughter grew too loud/
And she bowed and curtsied to the man who reached and offered her his hand,/
And he led her down to the long white car that waited past the crowd.

Outras candidatas a Audrey

O meu melhor amigo tem como principal característica um coração generoso que, felizmente, o torna pouco selectivo na distribuição do afecto. Por amor do seu aniversário, vi-me, pois, sentada à mesma mesa que uma socialite das - chamemos-lhe assim - letras portuguesas. Vinda directamente do meu modesto «ganha-pão», estava preparada para ser iluminada por alguém que se apresenta a si mesma como a pessoa que pôs Portugal a ler. Mas não. A debicar um prato de arroz basmati, a socialite limitou-se a afirmar que o seu próximo livro seria uma vingança pública. O alvo era uma ex-amiga que pusera o pé em ramo verde, anunciava com o mesmo olhar com que os sicilianos afiam facas. O mais curioso, no entanto, foi descobrir que a colunável escriba partilhava o sonho da minha cabeleireira de ocasião, a que já me referi. Queria ser Audrey Hepburn -«É o meu alter ego», dizia, peremptória. Mas, ao contrário da outra, esta afirmação não foi acompanhada por qualquer brilho sedutor. Nos seus 39 quilos e meio cuidadosamente adornados, esta foi a conviva mais patética da noite. E nem sequer tocara em álcool.

Thursday, July 28, 2005




Aos meus amores

Recomendo o CD que, neste momento, ouço com a atenção que vem da alma.
Que falta você me faz - Maria Bethânia canta Vinicius.

Wednesday, July 27, 2005


O sonho do Cinema

Num destes dias, a pressa à mistura com a obrigação duma apresentação digna levou-me a trocar, momentaneamente, de cabeleireira. Foi aí que conheci uma dessas jovens brasileiras cuja aptidão natural para o atendimento público melhorou consideravelmente a qualidade do comércio lisboeta. Natural do Rio Grande do Sul, contou-me boa parte da vida nos escassos quinze minutos em que se ocupou da minha excelentíssima melena. Não era propriamente uma garota de Ipanema, mas alimentava o sonho de vencer na Europa, graças a enormes doses de simpatia e muitas horas de trabalho. O que nunca seria - anunciava - era uma dessas «marias chuteiras», o que, na grande criatividade vocabular dos brasileiros, significa mulher que corre de futebolista em futebolista até acumular pé-de-meia que a conforte quando escassearem os encantos. Nas suas palavras adivinho uma linhagem de lutadoras, alimentadas, na labuta diária, por sonhos secretos. «Minha mãe amava cinema», disse-me ela, quase no final da função. «Por isso, me deu esse nome». Qual?, pergunto, já a imaginar Gildas&Marlenes. Ela sorriu, subitamente coquette nos seus oitenta kgs: «Audrey!»

Tuesday, July 26, 2005





Elis, sempre.
Sobretudo como banda sonora de dias vagamente melancólicos.

Monday, July 25, 2005



Charlie and the Chocolat Factory, de Tim Burton

Está quase, quase a estrear em Portugal, mas já vi. E não digo mais...

... A não ser que Tim Burton está na sua melhor e mais alucinante forma.

Recordar Maria Ondina Braga

De tanto trabalhar em estreito convívio com novidades literárias, canso-me na generalidade das livrarias portuguesas. Ainda ontem, domingo, me aconteceu isso mesmo na Bertrand do Chiado, cujos fundos estão praticamente reduzidos à literatura light, tida por adequada à saison, ou a obras lançadas em Portugal nos últimos três meses. As excepções a esta regra são livrarias que (re)visito com uma sensação de encantamento - a Livr'arte, em Benfica, e a Galileu, em Cascais - ali estão as novidades, claro, mas também obras, nacionais ou estrangeiras, com anos de «vida». Foi, aliás, na Galileu que encontrei, há alguns dias, um lindíssimo livro de Maria Ondina Braga intitulado A China fica ao lado. Publicado em 1974, o volume reune pequenas crónicas e contos ambientados em Macau e recorda, a quem já o esqueceu (e são muitos, infelizmente), a vivacidade de escrita e o agudo sentido de observação desta escritora que morreu pobre e amargurada. Leio-a no comboio quotidiano que tomo para o «ganha-pão» e consigo vislumbrar a China na linha do horizonte.

Friday, July 22, 2005






Escrevi este conto para a antologia Curtas-Letragens (publicada em final do ano passado). Em estação que convida a maior proximidade com o mar, gostaria agora de partilhá-lo convosco.

Furacão



«I have been half in love with easeful Death…Was it a vision or a waking dream?»

Keats, «Ode to a Nightingale»;




Os primeiros sinais do furacão Laura tinham chegado a Key West na noite em que Hamilton se decidira a deixar Sandy. As rajadas de vento atingiam os 195km/hora e as ondas que varriam a costa em breve poderiam ultrapassar os 10 metros, mas nenhuma força, por mais ameaçadora que parecesse, impedia o velho Buick, oriundo do Tennessee, de prosseguir estrada fora. Como se a Hamilton Davis – o seu condutor – perseguisse a ideia de um encontro com o destino. No banco ao lado levava apenas um volume de poemas de Edgar Allan Poe, o mesmo que, desde criança o surpreendia pela desmesura da dor: «E assim estou deitado toda a noite ao lado/Do meu anjo, meu anjo, meu anjo, meu sonho e meu fado,/ No sepulcro ao pé do mar,/Ao pé do murmúrio do mar», lembrava de cor, como nos tempos em que imaginava a desditosa com o rosto de Gene Tierney.
Ao contrário do poeta que perdera tragicamente a amada, Hamilton regressava ao murmúrio do mar, mas não podia ter saudades. Não tinha de quê. O que mais lhe doía, na partida, era esta perplexidade de se ter dissolvido em espuma tudo o que Sandy lhe dera nos melhores tempos – a admiração profunda, o acompanhamento incondicional, a disponibilidade que ela lhe declarara constante. Sentia-se como alguém que se descobrisse tomado de amores por um fantasma – fora uma aparição ou, tão ansioso estava por um amor assim, que passara todo o tempo a sonhar?



Hamilton e Sandy encontraram-se durante o último furacão. O Mitch («por que diabo falam dos furacões como de heróis de romances?», perguntara-lhe ela quando foram apresentados) nasceu de uma inocente brisa tropical no Mar das Caraíbas. Treze dias depois de ter roubado o panamá de um descuidado veraneante, Mitch destruíra edifícios, pontes, estradas, arrasara zonas costeiras um pouco por toda a América Central e no Sul dos Estados Unidos, mas sobretudo causara cerca de 11 mil vítimas mortais. Treze dias que colocaram Hamilton Davis, professor de Matemática, e Sandra Charles, sem ocupação precisa, que viera às Key em busca da lenda romântica de Hemingway, no limiar do enamoramento.
Fecharam-se num café enquanto toda a cidade seguia, inquieta, a intensidade do vento. «Como num filme antigo», comentou Sandy, ansiosa por demonstrar que existia um cérebro bem treinado sob a franja loura. «Está a falar daquele com o Edward G. Robinson?» – respondeu. «Chama-se Key Largo e passa-se precisamente num local como este – tão decadente que os seus poucos clientes podem morrer por esquecimento do mundo». Lembra-se de pensar em si próprio com sarcasmo («lá está o professor de Matemática a mostrar que sabe umas coisinhas para além da Tabuada»), mas a verdade é que Sandy, afinal pouco mais velha do que as suas alunas do liceu, mordeu o isco e pediu-lhe para falar de Hemingway, que ainda se apaixonara por Key West depois de conhecer quase tudo.
Os tempestuosos dias que se seguiram glosaram este mote. À medida que a tempestade tropical atingia proporções assustadoras, Hamilton Davis, em sobressalto, compreendia que nem sempre se fala de Literatura quando se fala de Literatura, sobretudo se a fúria dos elementos transforma duas pessoas numa ilha. Em breve, Hemingway era apenas o pretexto para que Hamilton e Sandy se tocassem. No último dia do furacão, quando já se sabia que este era fora o mais mortífero da história do Atlântico desde 1780, Hamilton pôs uma velha canção de Sinatra no gira-discos do café e convidou-a para dançar. Meses depois, estava a viver no Tennessee, lado a lado com uma família em tudo diferente da sua, só porque esta era a família de Sandra Charles, a mulher que lhe fora trazida no olho do furacão.

A relação, nascida sob tão romanescos auspícios, não tardou a mostrar-se menos especial do que Hamilton esperara no momento de trocar o liceu da ilha onde crescera por um escritório bancário numa pequena cidade nostálgica do Klu Klux Khan. No dia em que se descobriu a levantar búzios ornamentais para lembrar o som do mar percebeu também que os tempos em que passeavam de mãos dadas, trocando sussurros e beijos, estava longe. Cansada de uma conquista que não tardou a parecer-lhe demasiado fácil, Sandy sugeria-lhe que estivera com outros, fazia comparações, referências consecutivas ao seu passado sexual. E ele ouvia, fingindo brincar e participar no jogo, embora estivesse também muito consciente de que quando amava, só conhecia práticas lúdicas que conduzissem ao êxtase.
Foi, sob o calor sufocante do Verão sulista, que Hamilton compreendeu quão irremediável se tornara a distância que os separava. Como em tantas outras tardes, Sandy e a mãe tinham reunido um grupo de amigas. Como há muito tempo acontecia, também nessa tarde Hamilton, que chegava do banco, não pode impedir-se de as olhar com um misto de desdém e horror. Pareciam-lhe patéticas estas mulheres de várias gerações a presumir de Scarlett O’Hara, como se o Sul ainda fosse um mar de algodão em que damas de crinolina eram devotadamente servidas por criados negros e silenciosos. Jogavam canasta, bebiam laranjadas com muito gelo e falavam sobre homens. Nos últimos anos, a pedido de várias universitárias, concederam que o tabaco fosse acrescentado à mistura, sob a alegação de que era preciso acompanhar a moda, mas tudo o mais continuava tragicamente encalhado num qualquer buraco negro do tempo em que as pessoas se comportavam como num filme de época.
Hamilton pôde constatar, dessa vez, que a sua chegada interrompera uma consulta de Tarot, outra das actividades a que as circunstantes habitualmente se dedicavam. Rebecca Mae, auto-proclamada especialista em artes divinatórias, lançava as cartas para, alegadamente, iluminar o passado, presente e futuro da consulente. Que era, a avaliar pela atrapalhação evidenciada pela interessada e respectiva mãe, a própria Sandy. Se o amor o tivesse cegado completamente, bastaria aquela comunidade de mulheres, assim reunidas e para semelhante efeito, para lhe lembrar que nunca passara dum intruso quer no Tennessee, mas sobretudo – e mais grave ainda – na vida de Sandy. Do andar de cima, onde preparava um banho, Hamilton pôde ouvir distintamente a voz da pitonisa:

- Não estou preocupada com o teu futuro, Sandy. As cartas dizem-me que encontrarás o amor da tua vida (aliás, todas sabemos que já o encontraste, não é querida?)
- Só te enganaste no caminho – interrompeu a mãe da consulente.
- Mas vejo um elemento de perturbação no teu presente. Estás a ver esta carta – a do Diabo? – é a sua presença que te impede de seguir adiante. Sabes o que tens a fazer: enfrentar a realidade com coragem.
- E ruma aos braços do teu Andy, que te ama e sempre amou, independentemente das tuas loucuras – aconselhou uma das conjuradas.

Falavam de Andy Stockwell, o amigo de infância, que a sogra de Hamilton continuava a tratar como a um dos filhos. Apenas um dos muitos nomes na lista com que Sandy gostava de o causticar . O Diabo era ele próprio – o forasteiro que ameaçava a perfeição daquele quadro – mas que este estranho mundo não tardaria a exorcizar. Sentado na beira da banheira, Hamilton sentiu que tudo o enojava naquelas mulheres – a forma afectada como prolongavam as sílabas, a ociosidade, as luvas brancas que impunham aos criados. Um nojo que tomou proporções insuportáveis, quando percebeu que em breve se estenderia a Sandy e ao amor que por ela sentia. A partir de tão tremenda constatação dentro de si mesmo, Hamilton só podia fazer uma de duas coisas: partir ou morrer.






Quando, semanas depois, ouviu na Rádio a notícia de que se aproximava da Costa Sul mais um furacão, cujo impacto se previa comparável ao anterior, dois anos antes, Hamilton não esperou por melhores dias – improvisou uma bagagem muito leve, a que somou os muito manuseados poemas de Edgar Allan Pöe e meteu-se no Buick, disposto a enfrentar a tempestade. Familiarizado, desde criança, com lendas povoadas de piratas espectrais, acreditava piamente na capacidade do mar para apaziguar os dilemas do coração humano. Ao longo da estrada que boletins metereológicos cada vez mais alarmantes iam desertificando, esperava apenas que este furacão levasse Sandy da sua vida da mesma maneira que o anterior o roubara de si mesmo. De volta ao seu mar de galeões afundados, esperaria um amor que lhe merecesse saudades.

Thursday, July 21, 2005







Concentrada em tarefa urgente para o «ganha-pão», tenho de me abster, por ora, de escritas «extra-curriculares». Deixo-vos com imagens de algo de que muito gosto: faróis. O segundo é o de Finisterra, na Galiza, e o terceiro, bem próximo de Lisboa, é o do Cabo da Roca - onde a terra acaba e o mar começa.

À falta de vista de costa, recomenda-se:
Leitura: Virginia Woolf, To the Lighouse;
Filme: O Retrato de Jennie; William Dieterle;

Wednesday, July 20, 2005




O mais belo poema de amor?

A propósito de amor e dos álibis de que necessita (ou não), eis o que o considero um dos mais belos poemas alguma vez escritos. É da inglesa Elizabeth Barrett (1806-1861) que, aos 40 anos, após uma vida de reclusão imposta pela família, encontrou o amor no poeta Robert Browning.

How do I love thee? Let me count the ways.
I love thee to the depth and breadth and height
My soul can reach, when feeling out of sight
For the ends of Being and ideal Grace.
I love thee to the level of everyday's
Most quiet need, by sun and candle-light.
I love thee freely, as men strive for Right;
I love thee purely, as they turn from Praise.
I love thee with the passion put to use
In my old griefs, and with my childhood's faith.
I love thee with a love I seemed to lose
With my lost saints, -I love thee with the breath,
Smiles, tears, of all my life! - and, if God choose,
I shall but love thee better after death.

Tuesday, July 19, 2005



Para que a «contribuição» de hoje não fique muito amarga. Na edição francesa da revista Premiere, o destaque vai todo para o nunca demasiado adjectivado Johnny Depp. Vanessa Paradis, a esposa, disserta sobre as dezenas de razões que a ligam ao actor. Pergunto eu: o amor precisa de álibis?

Monday, July 18, 2005

Blind date com a História

Em Budapeste. a História dos últimos 50 anos não é coisa a acompanhar de manual em riste – toma forma humana nas pessoas com quem nos vamos cruzando, rua fora. Michael, chamemos-lhe assim, teria mais de 80 anos e exibia, alto e bom som, um forte sotaque californiano. Meteu conversa connosco numa esplanada ao ver o nosso Guia «American Express», escrito em Português - queria saber que língua é esta em que «Budapeste» se escreve com «e» no final. Respondemos e, a propósito dum amigo que tem nas Azenhas do Mar, sentou-se na nossa mesa e desfiou pedaços da sua vida, que é, afinal, uma vida da Europa Central,marcada a ferro e fogo pelas grandes tragédias do século XX. Filho dum tipógrafo de Budapeste, deixou o país aos 15 anos, depois de ter resistido ao cerco soviético no final da IIª Guerra Mundial e rumou, como milhões de refugiados, ao «El Dorado» americano. Transformado num velhinho bronzeado, alberga-se agora no aconchego do Hotel Intercontinental porque a cidade em que nasceu adquiriu contornos de terra incógnita. Apesar da simpatia contagiante, não consigo evitar de fazer «contas de cabeça». O homem resistira ao cerco soviético, ao lado de quem? A resposta surge com um calafrio: da Alemanha nazi. Mais de seis décadas depois, a evidência da conclusão ainda provoca um «nó» na garganta.


Um tributo à Hélia em forma de gato - um animal que ela tanto ama. Esta é a minha Vicky, um «diabinho» de quatro anos.

Friday, July 15, 2005

Um livro de Hélia, para nosso encantamento

Por uma daquelas agradáveis surpresas que a vida (por vezes) nos reserva, conheci a escritora Hélia Correia durante uma reportagem que, no final de 2001, fiz na região de Castela La Mancha. A Oficina de Turismo Espanhol em Lisboa convidou um pequeno grupo de jornalistas e escritores portugueses para um passeio nestas terras assombradas pelos soberbos fantasmas de Cervantes e El Greco. Entre eles, estava Hélia. Doce, muito culta, muito fascinada por mistérios. Encontrei na pessoa aquilo de que já gostava na obra. Lera com muito agrado textos como Montedemo; A Fenda Erótica ou Insânia. Mais tarde, viria a apaixonar-me completamente por Lillias Fraser, que considero ser (até à data) a obra-prima da autora.
Importa, todavia, que a sombra prodigiosa deste romance não pese excessivamente sobre outros textos mais curtos de Hélia que merecem a nossa melhor atenção. Refiro-me, por exemplo, à continuação imaginada para a novela de Alexandre Herculano, A Dama Pé-de-Cabra, publicada no princípio deste ano pela Relógio d'Água. Mas refiro-me, antes de mais, à pequena novela acabada de sair na mesma editora, Bastardia. Li-a, de um fôlego num comboio hotel que me levava a Madrid. Está lá, intacto, o universo misterioso da escritora à mistura com a sua incomparável percepção dos abismos da alma. Começa assim: «Há uma irreparável decepção quando um homem encontra uma sereia. Isso acontece muito raramente. Podemos, no entanto, suspeitar se um vizinho no prédio volta a casa no fim do Verão, com a família e os cães, e há nos olhos de todos qualquer coisa de alguém cuja visão se desfocou». Abri-vos o apetite?



Habla con Ella, de Pedro Almodóvar (2002)
... Que é também a melhor forma que encontro para vos desejar um fim-de-semana bem passado.

Não tenho um Citroen, como o que, no anúncio, vinha associado a esta canção dos Pink Martini. Mas acordo muitas vezes com esta disposição. «Je ne veux pas travailler/Je ne veux pas dejeuner» and so on and so on... Não me apetece matar, com a regularidade imposta pela rotina, o mistério primordial da literatura, do cinema, das artes e das ideias. Não me apetece dissecar um filme, um livro, uma declaração com a frieza das análises económicas que hoje se usam. Ainda há surpresas? Há. Mas, para elas - ó grande injustiça - não é preciso trabalhar. Acontecem, aparentemente vindas do nada. Há oito dias, estava numa das cidades de que mais gosto - Madrid - com uma das pessoas mais importantes da minha vida. Melhor era impossível. Ou talvez não...
Fomos ao Teatro Español ouvir a Martirio. Plateia cheia. Olho para a fila ao lado e vejo Penélope Cruz e Pedro Almodóvar. A menina é jeitosa, mas a sua presença não me suscita qualquer interesse especial. E, no entanto, o realizador de Habla con Ella torna-se um espectáculo dentro do espectáculo. Como num caleidoscópio, «viajo» para o princípio daquele filme e sinto-me Benigno a estudar a emoção de Marco Zaluaga enquanto ambos vêem Pina Bausch. Almodóvar não me desilude. Quando Martirio ataca uma copla mais sofrida, o realizador puxa do lenço e sacode uma lágrima furtiva. Sinto-me reconfortada, no meu inocente voyeurismo. Há coerência entre o homem e a sua obra.