Friday, September 30, 2005
Manual de civilidade para meninas rabinas
Sim, é verdade que os contraceptivos foram inventados para libertar a mulher do secular terror duma gravidez indesejada. Também ninguém põe em causa que, graças ao esforço das sufragistas de há 100 anos, somos agora seres políticos de pleno direito - elegemos e somos eleitas, tal como os homens da nossa vida. Vamos à Universidade em maior número do que eles, diga-se - em abono da verdade - com nefastas consequências para a alegria de alguns cursos. E, no entanto...
E, no entanto, minhas senhoras... nada de euforias. Diz-me a minha longa experiência de menina rabina que, 30 anos depois da revolução dita dos cravos, as mentalidades, mesmo entre pessoas que votam à esquerda, não distam muito das expressas pela revista Menina e Moça, órgão oficial da Mocidade Portuguesa Feminina. Por isso, caras amigas, se querem singrar, airosamente e em velocidade de cruzeiro na sociedade portuguesa, tomem juízo e sigam estes meus conselhos:
1. Case-se, por amor de Deus! O homem pode ter um sovaquinho incontornável; cortar as unhas em público e não ter qualquer respeito por si, mas é um homem e deve ser tratado como um animal em vias de extinção. Só a presença dele no maple e em alguns jantares assegurará que você não é uma pobre criatura desasasada.
2. Dirija-se aos seus superiores com um fiozinho de voz. Sabia que a Bette Davis é a actriz mais detestada pelos homens? Francamente, do que estava à espera? Que eles apreciassem aquele sorriso desdenhoso e aquela voz segura de si? Por isso, faça de conta que vai entrar numa unidade de cuidados intensivos e implore a sua sábia orientação. Se não o fizer a um ritmo quase diário, arrisca-se a ouvir um ultrajante: «Por que diabo não és tão doce e envolvente como a Belinha ou a Patuxa?»
3. Não aprecie os homens com o mesmo à vontade com que eles falam das nossas mamocas. Mesmo que eles sejam os seus melhores amigos, mesmo que partilhem consigo as bejecas e a taça de amendoins, não gostam de a ouvir comentar os atributos físicos de outros homens. Não se iluda, aquele olhar reprovador significa apenas uma coisa: «Com que então ninfomaníaca?»
4. Não se mostrem demasiado dinâmicas e seguras do caminho que querem seguir. Como escrevia a referia revista Menina e Moça, as mulheres demasiado dinâmicas são «o terror dos que aspiram à tranquilidade». A amiga pensava que 20 anos na escola lhe permitiam ser dona do seu destino? You stupid woman! Você nasceu mulher e, como tal, deverá ser um espírito pacato e facilmente conformável com as circunstâncias. Isto foi escrito em 1941? Sim, mas, já dizia o Salazar, que «os homens mudam pouco, os portugueses quase nada».E - deixem que vos diga - ele sabia do que falava.
Vá, meninas, não sejam preguiçosas. Treinem e cantem comigo: «I'm a Barbie girl/with a barbie face...»
Tuesday, September 27, 2005
Poema sobre a canção da esperança
Dá-me lírios, lírios,/
E rosas também./
Mas se não tens lírios/
Nem rosas a dar-me, /
Tem vontade ao menos/
De me dar os lírios/
E também as rosas./
Basta-me a vontade,/
Que tens, se a tiveres,/
De me dar os lírios/
E as rosas também,/
E terei os lírios -/
Os melhores lírios -/
E as melhores rosas/
Sem receber nada, /
a não ser a prenda/
Da tua vontade/
De me dares lírios/
E rosas também.
Álvaro de Campos
Dá-me lírios, lírios,/
E rosas também./
Mas se não tens lírios/
Nem rosas a dar-me, /
Tem vontade ao menos/
De me dar os lírios/
E também as rosas./
Basta-me a vontade,/
Que tens, se a tiveres,/
De me dar os lírios/
E as rosas também,/
E terei os lírios -/
Os melhores lírios -/
E as melhores rosas/
Sem receber nada, /
a não ser a prenda/
Da tua vontade/
De me dares lírios/
E rosas também.
Álvaro de Campos
Monday, September 26, 2005
Carole Lombard
O destino fez dela uma diva trágica de Hollywood, mas, no écran, foi uma das mulheres mais divertidas de sempre. Como poderemos ver durante o mês de Outubro na Cinemateca Portuguesa, era bela, talentosa e sofisticada. Morreu aos 34 anos, num desastre de avião, durante uma campanha que visava despertar a opinião pública norte-americana para a necessidade do envolvimento na IIª Guerra Mundial. Em terra, de coração despedaçado, ficava Clark Gable, com quem casara em 1939.
Friday, September 23, 2005
«The Kiss», Robert Doisneau
Valsinha da repartição
E um dia ele chegou, encostou-se ao armário, disposto a fazer sala a pretexto duma banalidade qualquer. Mas ela, afogueada como uma menina de escola, soube logo que ele tomara a decisão de acabar com anos de silêncio pesado como é o dos desejos insatisfeitos, de olhares furtivos, gestos apenas esboçados. Já não podem brincar às escondidas no corredor. Têm os dois a mesma idade, que é a de terem juízo. Suspeito que não o terão.
Tuesday, September 20, 2005
Café et cinéma à Paris (ou a sonhar com isso...)
Há muitas maneiras de conseguir o impossível, isto é, de alegrar uma tarefa tão empolgante como uma corrida de caracóis. Neste caso, recorro ao CD Café de Flore 2, que tem a arte de combinar dois «vícios» de que não me separarei, nem por imposição médica - o café e o cinema. «Ambientado» no parisiense «Café de la Flore», à Saint-Germain-des-Près, reúne Catherine Deneuve (a cantar «Toi Jamais», como no filme Huit Femmes), Ann-Margret, Juliette Greco, Serge Gainsbourg, Dimitri from Paris com os (meus queridos) Pink Martini e até o actor Anthony Perkins (sim, esse mesmo, o inquietante protagonista de Psycho) a interpretar um dos «hinos» da cidade-luz: «Il n'y a plus d'après», escrito por Guy Béart para «La Greco».
A propósito de Paris e seus cafés, a propósito de cinema, creio que recordarei para sempre a minha última estada na capital francesa, nomeadamente um jantar no restaurante Le Grand Colbert. Não porque a refeição fosse extraordinariamente apetitosa, mas porque, a meio da mesma, descobri que ali fora rodada uma cena chave de Something Gotta to Give. Cinéfila fetichista, delirei à ideia de que, ali mesmo, naquela mesmíssima sala, tinham estado sentados Jack Nicholson, Diane Keaton e Keanu Reeves. A animação da noite não se ficou por esta descoberta. Em plena sobremesa raffinée, alguém na nossa mesa alertou para a chegada dum visitante inesperado. Não, não era o Nicholson que voltava ao local de filmagens, nem tão pouco o fantasma de Colbert que assombrava o luxuoso restaurante baptizado em sua honra. Tratava-se apenas dum ratinho que, oriundo da cozinha, atravessava a sala em busca duma saída airosa para a sua incursão. Alguém aventou que talvez fosse «le petit Colbert», mas a coisa passou-se sem que o bon chic, bon genre do local saisse beliscado. Le Grand Colbert continua na lista dos «best places to kiss at Paris».
Monday, September 19, 2005
Livros da minha vida, I
«As famílias felizes assemelham-se todas; as infelizes são-no cada uma à sua maneira». É com esta frase (ou, pelo menos, com esta ideia) que abre o romance de Leo Tolstoi, Anna Karenina. É um dos livros que levaria, sem hesitações, para a tal ilha deserta de que tanto se fala... Li-o há vários anos numa tradução do Russo para Inglês, quando a longa agonia de minha mãe me fazia sentir que atravessava um túnel sem luz à vista. E aquelas personagens, que a serem «verdade» teriam vivido num mundo tão diverso do nosso, proporcionavam-me uma reconfortante companhia. Ainda hoje não consigo saber como alguém que escreveu uma epopeia tão absorvente como Guerra e Paz, ainda arranjou tempo e génio para produzir um drama passional tão denso como este, onde, contrariando maniqueísmos fáceis, cada personagem é um mundo.
Recordo este livro a propósito da transmissão, na RTP, no passado sábado, daquela que é justamente considerada a melhor adaptação cinematográfica das várias que o romance de Tolstoi teve - a de Clarence Brown, protagonizada por Greta Garbo e Fredric March. Assinalava-se assim o centenário do nascimento de Garbo. Da melhor forma. Setenta anos depois de realizado o filme, o encontro de Anna com o Conde Vronsky, na estação de caminhos-de-ferro de Moscovo, ainda corta a respiração.
Thursday, September 15, 2005
Este post é para o «Cebolinha», o que, como sempre, não exclui os outros queridos leitores
Legenda para a vida de um vagabundo
Nasci vagabundo em qualquer país, /
minhas fronteiras são as do mundo./
Esta sina vem-me no sangue:/
não me fartar! Um desejo morto,/
mais de dez a matar. /
O caminho é longo!… /
— Mas nada é longe e distante/
quando se quer realmente… /
E nunca o cansaço é tão grande/
que um passo mais senão possa dar. /
Joaquim Namorado
Wednesday, September 14, 2005
Dica de leitura
O destino das grandes cortesãs da História sempre deu muito que sonhar. De Cleópatra à Bela Otero passando por Diana de Poitiers ou Ninon de Laclos são muitas as mulheres de destino excepcional que Susan Griffin evoca no seu livro, The Book of Courtesans - A Catalogue of Their Virtues. Fruto de um rigoroso trabalho de investigação, esta obra demonstra como algumas destas cortesãs seduziram tanto pelos dotes físicos como pelo brilho das suas inteligências. Como se as animasse o próprio espírito de Xerazade.
Monday, September 12, 2005
Fim de Verão
Não estou a enterrar na areia os amores deste Verão, mas gosto - sempre gostei - do novo alento que Setembro traz à vida. Volver a empezar, dizem os espanhóis e é disso que se trata. Para saborear a estação apenas há que substituir os prazeres que o Sol proporciona pelos outros - o conforto da primeira mantinha, um cappucino, uma revista lida no sofá enquanto na aparelhagem roda um CD de Astor Piazolla. Foi assim o meu sábado, depois de quase 24 horas consecutivas ao serviço do «ganha-pão». Para acabar o dia em beleza, fui à Cinemateca ver A Regra do Jogo, de Jean Renoir. É bom vê-la reaberta - e lotada - depois do habitual (e, a meu ver, incompreensível) jejum de Agosto. E o melhor é que o sol ainda nem sequer nos deixou. Ainda hoje espero passar a tarde - ou parte dela - na esplanada. Tenho muito que fazer? Tenho muito que amar.
Friday, September 09, 2005
E se ao fim de quase 17 anos de profissão ainda houvesse surpresas? ...
De partida para uma missão externa, vi-me na contigência, lá no «ganha-pão», de entregar a tarefa que tinha entre mãos a outro elo da cadeia. O que, quase sempre, se revela mais espinhoso do que todo o trabalho feito até ali. Ontem, porém, foi diferente. Detinha-me em pormenores quando o meu interlocutor me surpreendeu com esta resposta:
- Tudo bem. Vai descansada.
Eh lá! Que é isto? - pensei. Desculpem se exagero o tom, mas nestes anos todos nunca alguém me dissera tal coisa. De facto - percebi agora - nunca fora descansada. Será que ainda há esperança? Ainda há quem esteja mais interessado nas soluções do que nos problemas?
Tuesday, September 06, 2005
In memoriam James Dean (1931-1955)
Uma história americana
Salinas (Califórnia), Setembro de 1955
Num bar à beira da estrada, Garfield Spencer tem pouco que fazer, mas muito que contar. Limpa o balcão corrido de fórmica e sonha com os domingos à tarde, em que se permite fechar a loja e ir a Salinas, para uma matinée no cinema e ser servido, uma vez por semana que seja. Nos outros dias é ele que serve cervejas e hot dogs a quem passa, porque, estabelecido à beira duma estrada nacional, não tem habitués para além do pó e do calor que sufoca a Califórnia – tão eterno como as neves do Kilimanjaro. Mas a falta de familiaridade que sente quando mais fere a solidão é largamente compensada pela aura de excepcionalidade em que, por momentos fugazes, se viu envolvido. Numa tarde impiedosa dum Verão de há muito tempo, pouco depois de estrear As Vinhas da Ira (com Henry Fonda), serviu um chá gelado a John Steinbeck. Permitiu-se cumprimentar o escritor. O sorriso distraído que este lhe devolveu foi suficientemente estimulante para que Garfield Spencer, homem de poucas letras, lhe comprasse os livros.
Foi, aliás, quando lia os dois grossos volumes de A Leste do Paraíso (decerto sugestionado pela notícia de que também este romance de Steinbeck viria a ser adaptado ao cinema) que lhe entrou pela porta do bar um jovem louro, vestido e penteado à moda de Marlon Brando. Viera de moto e demonstrava uma estranha ansiedade. Como se lhe faltasse uma parte de si mesmo que jamais encontraria, mesmo que nessa demanda empenhasse todo o seu esforço. Fumava muito e, de si, disse apenas que a Warner Brothers o tinha chamado para um filme muito importante. Era actor, mas até aí só trabalhara em Nova Iorque, onde Garfield Spencer nunca estivera. Poucas semanas depois este veria na Moviegoer um retrato deste rapaz impaciente. Chamava-se James Dean e o filme que o trouxera à Califórnia era mesmo importante – tratava-se de A Leste do Paraíso, que Elia Kazan iria realizar segundo o romance do outro cliente excepcional que Garfield servira.
Uma coincidência sincronística, teria concluído se fosse dado a leituras filosóficas, mas, como não era, apenas concluiu, auto-complacente, que a Califórnia se transformara no centro do mundo, para o qual confluíam as personalidades mais fulgurantes. A partir do momento histórico em que decorreu essa descoberta, quem, na desolação da estrada, se detivesse no bar solitário de Garfield Spencer era surpreendido pelo retrato, iluminado a lâmpada fluorescente, da mais jovem «estrela» de Hollywood. Como num altar feito de gelo.
- É um dos meus melhores clientes – mentia sem maldade. Garfield Spencer, já adiantado na casa dos 30 anos, passou rapidamente do culto à imitação. Nas horas que lhe sobravam, entre os copos que servia a desconhecidos, voltava-se para o espelho e copiava o penteado do ídolo. Muito curto sobre as orelhas, com a popa levantada. Passou a acender uns cigarros nos outros e a vestir a T-Shirt branca que lhe acentuava a barriguinha que os actores de Hollywood não tinham. Ninguém imaginava Garfield Spencer a declarar, à imagem do ídolo, que o importante era viver depressa, morrer jovem e ter um belo funeral, mas a verdade é que ninguém se dava ao trabalho de imaginar Garfield Spencer. Na tarde de 30 de Setembro de 1955, não muito longe daquele bar, o actor ficou para sempre igual à imagem do altar. Entregara o gato Marcus aos cuidados de uma amiga e partira para uma corrida de automóveis em Salinas. Ao pôr-do-sol, num cruzamento, o tempo deteve-se, como no momento antes dum duelo de western. James Dean morreu imediatamente, ao volante dum Porsche cintilante. Tinha 24 anos e deixava por estrear dois dos seus três únicos filmes – Fúria de Viver e O Gigante, ainda inacabado. No plateau, Elizabeth Taylor desmaiou e a produção afligiu-se – o que fazer com as cenas que o actor não chegara a filmar?
A poucos quilómetros do cenário da tragédia, refulgia o altar montado por Garfield Spencer. Aquele rosto jamais seria sulcado por rugas, o cigarro que lhe pendia do lábio jamais se apagaria, a expressão trocista pareceu adquirir uma inocência que só dependia do grau de comiseração sentido por quem olhava. «E foi o único a morrer entre todos os que iam nos dois carros», comentava, pesaroso, Garfield aos que, durante uma refeição rápida, pousavam os olhos no altar. Um desses clientes não se deteve, no entanto, em conversas compungidas. Pediu um hambúrguer com muita cebola e espiou, sem uma palavra, os gestos do empregado – o modo como defendia a chama do isqueiro, os dedos com que segurava no cigarro, o olhar límpido, a T-Shirt negra e justa.
Apesar de ser um homem cândido, Garfield Spencer sentiu que estava a ser observado. Talvez este fosse um cliente de há muito tempo, curioso com as mudanças que o tempo lhe trouxera. Ou talvez tivesse vindo porque alguém recomendara. Depois do hambúrguer, este cliente habituado a não desviar o olhar, confirmou-lhe parte das suspeitas. Já de pé, voltou a limpar os lábios e disparou:
- Tinham razão. Você é o perfeito sósia de James Dean. Uns anos mais velho, mas nada que não se possa resolver.
Estendeu-lhe o cartão de visita com o logótipo da Warner Brothers. Dias depois, como num passe de mágica, Garfield Spencer viu-se num plateau, fisicamente não muito longe de Elizabeth Taylor ou Rock Hudson, para terminar as cenas que o ídolo não chegara a filmar. Encadeado com o poder dos holofotes, repetiu escrupulosamente quanto lhe foi ordenado pelo realizador George Stevens, sem chegar a compreender toda a extensão do que lhe acontecera. Pagaram-lhe o combinado e comprou um carro melhor, mas o seu nome nunca figurou no genérico.
Salinas (Califórnia), Setembro de 1955
Num bar à beira da estrada, Garfield Spencer tem pouco que fazer, mas muito que contar. Limpa o balcão corrido de fórmica e sonha com os domingos à tarde, em que se permite fechar a loja e ir a Salinas, para uma matinée no cinema e ser servido, uma vez por semana que seja. Nos outros dias é ele que serve cervejas e hot dogs a quem passa, porque, estabelecido à beira duma estrada nacional, não tem habitués para além do pó e do calor que sufoca a Califórnia – tão eterno como as neves do Kilimanjaro. Mas a falta de familiaridade que sente quando mais fere a solidão é largamente compensada pela aura de excepcionalidade em que, por momentos fugazes, se viu envolvido. Numa tarde impiedosa dum Verão de há muito tempo, pouco depois de estrear As Vinhas da Ira (com Henry Fonda), serviu um chá gelado a John Steinbeck. Permitiu-se cumprimentar o escritor. O sorriso distraído que este lhe devolveu foi suficientemente estimulante para que Garfield Spencer, homem de poucas letras, lhe comprasse os livros.
Foi, aliás, quando lia os dois grossos volumes de A Leste do Paraíso (decerto sugestionado pela notícia de que também este romance de Steinbeck viria a ser adaptado ao cinema) que lhe entrou pela porta do bar um jovem louro, vestido e penteado à moda de Marlon Brando. Viera de moto e demonstrava uma estranha ansiedade. Como se lhe faltasse uma parte de si mesmo que jamais encontraria, mesmo que nessa demanda empenhasse todo o seu esforço. Fumava muito e, de si, disse apenas que a Warner Brothers o tinha chamado para um filme muito importante. Era actor, mas até aí só trabalhara em Nova Iorque, onde Garfield Spencer nunca estivera. Poucas semanas depois este veria na Moviegoer um retrato deste rapaz impaciente. Chamava-se James Dean e o filme que o trouxera à Califórnia era mesmo importante – tratava-se de A Leste do Paraíso, que Elia Kazan iria realizar segundo o romance do outro cliente excepcional que Garfield servira.
Uma coincidência sincronística, teria concluído se fosse dado a leituras filosóficas, mas, como não era, apenas concluiu, auto-complacente, que a Califórnia se transformara no centro do mundo, para o qual confluíam as personalidades mais fulgurantes. A partir do momento histórico em que decorreu essa descoberta, quem, na desolação da estrada, se detivesse no bar solitário de Garfield Spencer era surpreendido pelo retrato, iluminado a lâmpada fluorescente, da mais jovem «estrela» de Hollywood. Como num altar feito de gelo.
- É um dos meus melhores clientes – mentia sem maldade. Garfield Spencer, já adiantado na casa dos 30 anos, passou rapidamente do culto à imitação. Nas horas que lhe sobravam, entre os copos que servia a desconhecidos, voltava-se para o espelho e copiava o penteado do ídolo. Muito curto sobre as orelhas, com a popa levantada. Passou a acender uns cigarros nos outros e a vestir a T-Shirt branca que lhe acentuava a barriguinha que os actores de Hollywood não tinham. Ninguém imaginava Garfield Spencer a declarar, à imagem do ídolo, que o importante era viver depressa, morrer jovem e ter um belo funeral, mas a verdade é que ninguém se dava ao trabalho de imaginar Garfield Spencer. Na tarde de 30 de Setembro de 1955, não muito longe daquele bar, o actor ficou para sempre igual à imagem do altar. Entregara o gato Marcus aos cuidados de uma amiga e partira para uma corrida de automóveis em Salinas. Ao pôr-do-sol, num cruzamento, o tempo deteve-se, como no momento antes dum duelo de western. James Dean morreu imediatamente, ao volante dum Porsche cintilante. Tinha 24 anos e deixava por estrear dois dos seus três únicos filmes – Fúria de Viver e O Gigante, ainda inacabado. No plateau, Elizabeth Taylor desmaiou e a produção afligiu-se – o que fazer com as cenas que o actor não chegara a filmar?
A poucos quilómetros do cenário da tragédia, refulgia o altar montado por Garfield Spencer. Aquele rosto jamais seria sulcado por rugas, o cigarro que lhe pendia do lábio jamais se apagaria, a expressão trocista pareceu adquirir uma inocência que só dependia do grau de comiseração sentido por quem olhava. «E foi o único a morrer entre todos os que iam nos dois carros», comentava, pesaroso, Garfield aos que, durante uma refeição rápida, pousavam os olhos no altar. Um desses clientes não se deteve, no entanto, em conversas compungidas. Pediu um hambúrguer com muita cebola e espiou, sem uma palavra, os gestos do empregado – o modo como defendia a chama do isqueiro, os dedos com que segurava no cigarro, o olhar límpido, a T-Shirt negra e justa.
Apesar de ser um homem cândido, Garfield Spencer sentiu que estava a ser observado. Talvez este fosse um cliente de há muito tempo, curioso com as mudanças que o tempo lhe trouxera. Ou talvez tivesse vindo porque alguém recomendara. Depois do hambúrguer, este cliente habituado a não desviar o olhar, confirmou-lhe parte das suspeitas. Já de pé, voltou a limpar os lábios e disparou:
- Tinham razão. Você é o perfeito sósia de James Dean. Uns anos mais velho, mas nada que não se possa resolver.
Estendeu-lhe o cartão de visita com o logótipo da Warner Brothers. Dias depois, como num passe de mágica, Garfield Spencer viu-se num plateau, fisicamente não muito longe de Elizabeth Taylor ou Rock Hudson, para terminar as cenas que o ídolo não chegara a filmar. Encadeado com o poder dos holofotes, repetiu escrupulosamente quanto lhe foi ordenado pelo realizador George Stevens, sem chegar a compreender toda a extensão do que lhe acontecera. Pagaram-lhe o combinado e comprou um carro melhor, mas o seu nome nunca figurou no genérico.
La beauté cachée des laids
Quand on m'dit que j'suis moche/
J'me marre doucement pour n'pas te réveiller/
Tu es ma p'tite Marylin/
Et moi j'suis ton Miller/
Non pas Arthur plutôt Henry/
Le spécialiste du hardcore/
La beauté cachée/
Des laids des laids/
Se voit sans/
Délai délai
Même musique même reggae pour mon chien/
Que tout l'monde trouvait si vilain/
Pauv' toutou c'est moi qui boit/
Et c'est lui qu'est mort d'une cirrhose/
Peut-être était-ce par osmose/
Tellement qu'il buvait mes paroles/
La beauté cachée/
Des laids des laids/
Se voit sans
Délai délai/
Enfin faut faire avec c'qu'on a/
La sale gueule mais on n'y peut rien/
D'ailleurs nous les affreux/
J'suis sûr que Dieu nous accorde/
Un peu de sa miséricorde/
Car/
La beauté cachée/
Des laids des laids/
Se voit sans
Délai délai
PS - Porque Serge Gainsbourg não é apenas a voz masculina de Je t'aime...moi non plus.
Thursday, September 01, 2005
O eterno Rusty James
Chegar-nos-emos a curar das paixões da adolescência? Ou é a nostalgia que lhes empresta uma aura suplementar? Foi o que me perguntei após a sessão de cinema em que «reencontrei» o rapaz cujo retrato colava em todos os dossiers levados para o liceu. É este aqui ao lado, com pinta de lobo mau. Eu tinha 16 anos, acabara de ver Os Marginais, de Francis Ford Coppola e senti-me - como direi? - muito agradada. Quando, pouco depois, o mesmo realizador fez dele o eterno Rusty James, de Rumble Fish, foi a paixão total. Ficava toda a aula de Francês a sonhar com o dia em que ele haveria de me resgatar às agruras do Passé Composé.
Os anos passaram e o retrato amareleceu na capa do dossier. Talvez por isso tenha sido tão emocionante ver Colisão e «reencontrar» Matt Dillon, 20 anos mais velho, num papel que poderia ser a evolução natural dos seus rebeldes proletários, a fingir que não estavam derrotados à partida. Duros e, no entanto, vulneráveis como se os acompanhasse interiormente uma balada de Bruce Springsteen. Fosse ele menos bonito e poderia ser um homem da minha família.
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