Wednesday, November 29, 2006


In memoriam Robert Altman


Estive a recordar Gosford Park, de Robert Altman.

Nos espectáculos muito encenados, os bastidores são quase sempre mais eloquentes do que o palco. Na cerimónia de atribuição dos Oscars de 2002, o momento alto da noite foi oportunamente vislumbrado e captado pelo operador de câmara na plateia de notáveis: enquanto Ron Howard se preparava para receber o Oscar de melhor realizador, David Lynch e Robert Altman, nomeados vencidos, cumprimentavam-se com um abraço que inesperadamente substituiu os piedosos sorrisos do costume. Mais do que uma efusiva saudação, este gesto simboliza toda a História alternativa destes prémios que já vão na 74a edição - a História que não se traduz pela listagem dos vencedores, mas pela outra, a dos vencidos. Tamanha solidariedade entre estes dois grandes nomes do cinema sela os destinos de ambos como senhores de percursos ímpares e solitários que a indústria não consegue assimilar (a revista francesa Positif, de Março de 2002, compara Altman a Resnais, Imamura e...Manoel de Oliveira).
Gosford Park, a obra de Altman que o júri da Academia nomeou para seis Oscars (incluindo melhor filme e melhor realizador, vencendo apenas o de argumento original) devolve-nos o vigor dos melhores filmes do cineasta: Nashville (1975); A Mariage (1978); Streamers (1983);ThePlayer(l992) e ShortCuts(ï993).
Colocado perante o desafio de abordar um género novo na sua vasta fílmografía, Altman (já com 76 anos) optou por filmar uma espécie de cruzamento entre o policial à inglesa, a sátira de costumes e o filme da época. Conhecedor da História (que diz usar como a âncora que o impede de disparar em todas as direcções), fez-se transportar para a Inglaterra do princípio da década de 30, quando Hitler ainda não chegara ao poder na Alemanha, mas grossas nuvens já se formavam sobre toda uma sociedade e seus rituais. Com um surdo desespero que os aproxima da aristocracia francesa em vésperas da Revolução, Lord e Lady McGordle convidam os seus pares para uma caçada à perdiz, a ter lugar em Gosford Park.
No banco de trás dos seus Rolls Royce, os vários convivas, acompanhados por motoristas e criados de quarto, respondem à chamada, não porque os mova o irresistível apelo da caça, mas porque procuram, nesse convívio, a resolução para múltiplos problemas financeiros, decerto agravados pelos efeitos da Grande Depressão, desencadeada em 1929. Desprovidos de meios necessários ao sustento de tamanha ostentação, acossados pelos novos mundos prometidos pelo comunismo, à esquerda, e pelo fascismo, à direita, representam uma farsa em que a etiqueta substituiu a vida. Como numa peça de Noel Coward ou numa novela de Evelyn Waugh, autor de Brideshead Revisited e de A Handful ofDust, obras que, tal como Gosford Park, tomam por tema a inexorável decadência da aristocracia tradicional inglesa nos tempos em que o Duque de Windsor era a sua coqueluche.
Este fim-de-semana não viria a ser igual a tantos outros. Após desavenças com vários dos seus convidados e até a demonstração, perante todos, da ligação que o une à mais bonita das criadas, o dono da casa será assassinado.Com tanta gente reunida na mansão (incluindo dois parvenus de Hollywood), o filme parece lançado para um thriller à moda de Agatha Christie. No entanto, o desajeitado Inspector não ombreia com o faro de Hercule Poirot e os principais pontos de interesse do filme não residem na solução da intriga. Sem a consagração dos Oscars, este filme ficará para a História como um dos grandes trabalhos de Altman. Um cineasta para quem o Rolls Royce, filmado no princípio de Gosford Park, pode bem ser uma metáfora da sua obra - filmes sofisticados, concebidos como peças únicas, sem nenhuma concessão à indústria.

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