
25 de Abril sempre
Um blog de hedonista acerca de livros, filmes, viagens e afectos.
... E agora uma história para quem ainda acredita em causas. Quem lhe acrescenta um final?
A Pequena Floresta de Bambu
Crescia a olhos vistos a cidade onde vivia o pequeno Andrew Morton. Crescia em tantas direcções e de tantas maneiras que os que a habitavam desde meninos sentiam que, muito em breve, já não a reconheceriam com a mesma facilidade. «O que isto vai ser», declaravam com orgulho e esperança, sempre que se cruzavam com a construção do que seria mais um moderno viaduto; com as fundações para mais um bloco de apartamentos que se haveria de vender muito caro ou com os navios que limpavam o rio para que ele fosse digno de espelhar tamanha grandeza. O presidente da Câmara organizava visitas para jornalistas e homens de negócios. Os flashes disparavam. Os telejornais comentavam o fenómeno.
Aluno dos primeiros anos da escola local, Andrew Morton partilhava do entusiasmo dos seus vizinhos. A pequena e obscura cidade onde nascera seria agora mais do que um minúsculo ponto no mapa do país. Diariamente, quando, regressado das aulas, se fechava no seu quarto de brincadeiras, pegava nas caixas de Lego e construía viadutos; blocos de apartamentos e navios de diversas dimensões. Quando crescesse, anunciava do alto dos seus sete anos, seria engenheiro; para transformar cidades pequenas e obscuras, como a sua, em metrópoles que desafiassem o poder da Terra, onde todos os habitantes desfrutassem igualmente das alegrias da mais avançada tecnologia. E adormecia, reconfortado pela ideia de futuro.
Houve uma tarde, porém, em que Andrew Morton não regressou tão entusiasmado da escola como nos dias anteriores. Ao chegar ao quarto de brinquedos, percebeu que já não lhe apetecia ser engenheiro. Num gesto de raiva, derrubou as caixas de Lego, espalhando pelo chão centenas de peças multicolores, agora desprovidas de sentido. E entregou-se às lágrimas que vinha a evitar desde o terrível momento em que soubera que as retroretro escavadoras se preparavam para destruir o mais precioso tesouro do melhor amigo que já tivera.
Andrew conhecera Xiao Lin no dia em que este fora à sua escola fazer uma demonstração da arte da acrobacia chinesa tal como a aprendera, há muitos anos, na Ópera de Pequim. Fascinados com a agilidade demonstrada por um homem que tinha a idade dos seus avós, os miúdos não mais largaram Xiao Lin que, rua fora, tinha de lhes aturar mil e uma perguntas. A China era mesmo o país mais habitado do planeta? O seu alfabeto era composto por centenas de letras que demoravam muitos anos de escola a aprender? Misterioso, o chinês limitava-se a sorrir, substituindo as respostas por bolinhos da sorte que arrancavam gargalhadas de delícia na sua jovem audiência.
Andrew, por ser o mais insistente, veio a ser introduzido nos segredos da caligrafia chinesa. Munido de pena, tinta e grandes rolos de papel, Xiao Lin mostrou-lhe como a altivez de algumas daquelas letras, pintadas com a precisão duma obra de arte, lembravam os ramos de bambu que, num impulso decidido, parecem dirigir-se ao céu.
Triste, Andrew admitiu:
- Só conheço os rebentos de bambu que vêm nos pratos de galinha no restaurante chinês.
Xiao Lin riu. Mas logo acrescentou:
- Vem comigo – e levou Andrew a conhecer o jardim que rodeava o casarão muito antigo em que morava, num ponto afastado da cidade. Deteve-se junto duma muralha de ramos tão delgados quanto resistentes:
- Não é uma floresta de bambu comparável a qualquer uma que possas encontrar na China, mas, ainda assim, é tão densa e forte que só o astuto tigre a pode penetrar.
- Nem o vento?
- O vento brinca nela como o menino no recreio da sua escola. Não é suficientemente forte para a abalar.
Fascinado, Andrew fez da pequena floresta de bambu a sua segunda casa. Os legos com que construía miniaturas de prédios; pontes e navios foram substituídos por sonhos em que entravam mandarins, princesas de pés minúsculos e mercadores de longa trança. Entre risos, os colegas da escola comparavam-no aos ursos pandas que se alimentam desta planta. Andrew encolhia os ombros, sorridente – não se importava; estava feliz.
Meses depois desta descoberta, Xiao Lin morreu. E Andrew, que sofria a primeira grande perda da sua vida, passou a ir muitas vezes à pequena floresta de bambu que o seu amigo tratara com mimos de pai. O sussurro do vento por entre os finos caules transmitia-lhe a mesma sensação de segurança que, pouco antes, encontrara na presença do velho sábio chinês.
Mas os mesmos homens que mostravam o crescimento da cidade a jornalistas e negociantes tinham decretado que não seria assim por muito tempo. A velha casa de Xiao Lin; o jardim que a envolvia; a pequena floresta de bambu, tudo o que Andrew jurara guardar, seria sacrificado para que, em seu lugar, surgisse o novo edifício da Câmara Municipal. Uma autêntica maravilha da técnica, anunciava-se. Ar condicionado em todos os gabinetes; janelas auto-laváveis; robots que distribuiriam cafés, chocolates e cachorros quentes, que sei eu… Mas estes brinquedos de adulto tinham deixado de encantar o rapaz que não suportava a ideia de perder, assim, o pedaço de paraíso herdado dum amigo tão querido.
A biblioteca perdida
No sábado fui curar a neura nas compras. Sempre a meio caminho entre o fascínio da modernidade (é o ascendente Aquário, dizem os entendidos nestas coisas) e o legado do passado (signo solar Caranguejo), comprei um leitor de MP3 na FNAC e segui para a Feira da Ladra. Ia mais para desfastio do que por esperança de encontrar alguma coisa que jeito tivesse, mas acabei por encontrar o que restava de uma excelente biblioteca, vendida ao módico preço de 1 euro por unidade. Dei por mim a compreender que havia uma coerência intrínseca naquele vasto conjunto, o que parecia indicar que pertencera a uma só pessoa. Alguém que fora culto, que tivera bom gosto, que coleccionara aqueles livros com desvelo, ao longo de anos e anos. Comprei uma novela de Evelyn Waugh (O Ente Querido); um original de Rebecca de Daphne du Maurier e um «Gaélico sem mestre». Fiquei a pensar o quanto me teria entendido bem com o desconhecido que possuira a biblioteca que assim se dispersava.