Tuesday, March 14, 2006


Teatro de olhares

«Um olhar desencadeia uma paixão, um assassínio, uma guerra.»

Robert Bresson


Sei que estás aí, a desenhar o mapa da próxima aventura. Fumas um cigarro, um dos 50 deste dia sem nada de especial. Sinto que estás mesmo aí, talvez à distância do passo que não dou. Adivinho-te a presença, mesmo sem levantar os olhos para o confirmar. E se o fizesse? Ver-te-ia a observares-me na curta fracção de tempo em que te sustentasse o olhar tão seguro que chega a parecer frio. Sim, percebo agora, é frio, como raramente o é em olhos tão escuros.
É assim há anos, um jogo de gato e rato que se perpetua no silêncio. E se um dia…? ... E se um dia, esquecida da austeridade católica herdada de minha mãe, eu ignorasse que uma senhora não deseja, concede? Se quebrasse este aquário à força duma única palavra ou dum sorriso? O que aconteceria? Se uma borboleta que bate as asas na China provoca um tufão nos antípodas, o que poderá fazer o passo adiante que falta a um de nós?
Este jogo é tão antigo que o integrei na rotina quotidiana. A sedução de todos os dias nos dai hoje para que amanheçamos menos tristes. Eu começara por embirrar solenemente contigo. Aliás, confundira-te com outro, de má fama, que, pela mesma época, chegara à empresa onde trabalhava há anos. Seguiu-se que, desfeito o equívoco, me obstinei na antipatia: embora não apreciasse os executivos, todos impecavelmente vestidos de igual, aquela maneira descuidada de te vestires pareceu-me encenação de poseur, sobretudo quando às calças largueironas somavas um boné de pala, perfeitamente dispensável em edifício pouco exposto à luz solar. Vim a esquecer-te como só é possível num local onde, diariamente, centenas de pessoas conseguem cruzar-se sem se cumprimentar. Via-te sem te ver até ao dia aziago em que uma das minhas colegas decidiu apaixonar-se por ti à distância.

- Aquele?! Giro?! Estás doida?

A outra enaltecia-te os encantos – a presença forte, a curva do pescoço, os ombros largos, o cabelo denso, a maneira de acender o cigarro.

- Sim, talvez, mas vamos ao que interessa…

- Acontece, querida Ana, que ele não me liga a mínima. Acho que ele gosta é de ti.

- Estás mesmo doida.

Estaria? A ideia fez o seu caminho na minha imaginação. Dei por mim a alvoraçar-me secretamente à tua passagem, a preparar de véspera a toilette, a fazer-me notada, a fazer que me notasses. E notaste.
O nosso jogo adensou-se nos meses que se seguiram. Às vezes, a atracção adquiria a forma da hostilidade surda, totalmente alheia à ternura. Surgias e, nesse preciso instante, sentia-me a menina frágil que fora toda a vida. Desaparecias do meu horizonte e voltava a seguir o meu rumo tão bem delineado como sempre acontecera. Tinha tanto medo de te encontrar sem aviso que ficava agarrada à cadeira como se tomasse um pânico de morte.
Um dia houve em que me seguiste onde quer que eu fosse. Sozinhos no elevador, olhavas-me com essa insistência selvagem que te caracteriza e fui tomada de pânico. Um minuto, o minuto em que li todas as letrinhas pequenas do impresso que levava nas mãos, pareceu-me uma eternidade. A porta acabou por abrir-se para meu alívio, mas havia neste alívio o travo amargo das coisas não acontecidas. Se eu tivesse correspondido a esse olhar, em que zona remota do planeta teria acontecido o tufão?
A pequena cobardia não ditou o final desta, chamemos-lhe assim, relação. Os meses seguintes prolongaram-se do mesmo modo. Ninguém suspeitava. Talvez nem tu, pensava eu nos momentos que tanto mistério me alimentava as dúvidas. Mas a longevidade do teatro de olhares acabou por me alimentar o romantismo. Com a cabeça cheia de filmes, ponderei que, se tal atracção resistia para além dos vulgares prazos de validade destes fenómenos, era porque talvez fosses o tal do gostinho especial, a laranja amarga e doce, meu poema, aquilo a que a imprensa espanhola, sempre tão colorida, atribui o título de «príncipe azul». E se, assim fosse, só a minha timidez nos impedia de consumar tão risonho destino? Resolvi falar-te. Não foi uma declaração, não foi uma demonstração de coquetterie, apenas um gracejo que tivesse a arte de quebrar o aquário. Lembro-me que riste, mas não levantaste os olhos. Desta vez, contra o teu costume. Eu devia ter percebido imediatamente, mas, lamento, tardei uns dias a perceber que gostavas de andar em círculos no aquário e que gostavas de me ver reproduzir-te o movimento.
O teatro de olhares fechou o pano nesse mesmo dia. Não houve mais gestos esboçados, encontros furtivos que não o chegavam a ser, silêncios como campos minados. Agora apenas bastariam uns meses para que nos voltássemos a cruzar sem nos vermos. O mistério fora apenas o belo nome do nada.

4 comments:

Anonymous said...

Olha que dava uma pequena novela. Xicoração.

said...

Da primeira vez fiquei sem fôlego, agora fiquei sem pinga de sangue, sem palavras não fiquei, senao não estaria a escrever-te.

Os momentos de incerteza em que os olhares podem ser multiplamente interpretados costumam ser os mais saborosos; quando acaba essa sedução e começa outra temos que nos moldar a novas formas de interpretação...às vezes resulta, outras não.

Resta-me dizer-te que gostaria de conseguir descrever assim de uma forma tão pura, tão bonita também um flirt, uma atracção...talvez daqui a uns tempos.

Maria Clarinda said...

Um jogo de sedução, de flirt, escrito da maneira mais bela, que já algum dia li.
Parabéns

maria joão martins said...

Muito obrigada, Maria Clarinda! Devolveu-me o sorriso. Beijinhos