Teatro de olhares
«Um olhar desencadeia uma paixão, um assassínio, uma guerra.»
Robert Bresson
Sei que estás aí, a desenhar o mapa da próxima aventura. Fumas um cigarro, um dos 50 deste dia sem nada de especial. Sinto que estás mesmo aí, talvez à distância do passo que não dou. Adivinho-te a presença, mesmo sem levantar os olhos para o confirmar. E se o fizesse? Ver-te-ia a observares-me na curta fracção de tempo em que te sustentasse o olhar tão seguro que chega a parecer frio. Sim, percebo agora, é frio, como raramente o é em olhos tão escuros.
É assim há anos, um jogo de gato e rato que se perpetua no silêncio. E se um dia…? ... E se um dia, esquecida da austeridade católica herdada de minha mãe, eu ignorasse que uma senhora não deseja, concede? Se quebrasse este aquário à força duma única palavra ou dum sorriso? O que aconteceria? Se uma borboleta que bate as asas na China provoca um tufão nos antípodas, o que poderá fazer o passo adiante que falta a um de nós?
Este jogo é tão antigo que o integrei na rotina quotidiana. A sedução de todos os dias nos dai hoje para que amanheçamos menos tristes. Eu começara por embirrar solenemente contigo. Aliás, confundira-te com outro, de má fama, que, pela mesma época, chegara à empresa onde trabalhava há anos. Seguiu-se que, desfeito o equívoco, me obstinei na antipatia: embora não apreciasse os executivos, todos impecavelmente vestidos de igual, aquela maneira descuidada de te vestires pareceu-me encenação de poseur, sobretudo quando às calças largueironas somavas um boné de pala, perfeitamente dispensável em edifício pouco exposto à luz solar. Vim a esquecer-te como só é possível num local onde, diariamente, centenas de pessoas conseguem cruzar-se sem se cumprimentar. Via-te sem te ver até ao dia aziago em que uma das minhas colegas decidiu apaixonar-se por ti à distância.
- Aquele?! Giro?! Estás doida?
A outra enaltecia-te os encantos – a presença forte, a curva do pescoço, os ombros largos, o cabelo denso, a maneira de acender o cigarro.
- Sim, talvez, mas vamos ao que interessa…
- Acontece, querida Ana, que ele não me liga a mínima. Acho que ele gosta é de ti.
- Estás mesmo doida.
Estaria? A ideia fez o seu caminho na minha imaginação. Dei por mim a alvoraçar-me secretamente à tua passagem, a preparar de véspera a toilette, a fazer-me notada, a fazer que me notasses. E notaste.
O nosso jogo adensou-se nos meses que se seguiram. Às vezes, a atracção adquiria a forma da hostilidade surda, totalmente alheia à ternura. Surgias e, nesse preciso instante, sentia-me a menina frágil que fora toda a vida. Desaparecias do meu horizonte e voltava a seguir o meu rumo tão bem delineado como sempre acontecera. Tinha tanto medo de te encontrar sem aviso que ficava agarrada à cadeira como se tomasse um pânico de morte.
Um dia houve em que me seguiste onde quer que eu fosse. Sozinhos no elevador, olhavas-me com essa insistência selvagem que te caracteriza e fui tomada de pânico. Um minuto, o minuto em que li todas as letrinhas pequenas do impresso que levava nas mãos, pareceu-me uma eternidade. A porta acabou por abrir-se para meu alívio, mas havia neste alívio o travo amargo das coisas não acontecidas. Se eu tivesse correspondido a esse olhar, em que zona remota do planeta teria acontecido o tufão?
A pequena cobardia não ditou o final desta, chamemos-lhe assim, relação. Os meses seguintes prolongaram-se do mesmo modo. Ninguém suspeitava. Talvez nem tu, pensava eu nos momentos que tanto mistério me alimentava as dúvidas. Mas a longevidade do teatro de olhares acabou por me alimentar o romantismo. Com a cabeça cheia de filmes, ponderei que, se tal atracção resistia para além dos vulgares prazos de validade destes fenómenos, era porque talvez fosses o tal do gostinho especial, a laranja amarga e doce, meu poema, aquilo a que a imprensa espanhola, sempre tão colorida, atribui o título de «príncipe azul». E se, assim fosse, só a minha timidez nos impedia de consumar tão risonho destino? Resolvi falar-te. Não foi uma declaração, não foi uma demonstração de coquetterie, apenas um gracejo que tivesse a arte de quebrar o aquário. Lembro-me que riste, mas não levantaste os olhos. Desta vez, contra o teu costume. Eu devia ter percebido imediatamente, mas, lamento, tardei uns dias a perceber que gostavas de andar em círculos no aquário e que gostavas de me ver reproduzir-te o movimento.
O teatro de olhares fechou o pano nesse mesmo dia. Não houve mais gestos esboçados, encontros furtivos que não o chegavam a ser, silêncios como campos minados. Agora apenas bastariam uns meses para que nos voltássemos a cruzar sem nos vermos. O mistério fora apenas o belo nome do nada.
«Um olhar desencadeia uma paixão, um assassínio, uma guerra.»
Robert Bresson
Sei que estás aí, a desenhar o mapa da próxima aventura. Fumas um cigarro, um dos 50 deste dia sem nada de especial. Sinto que estás mesmo aí, talvez à distância do passo que não dou. Adivinho-te a presença, mesmo sem levantar os olhos para o confirmar. E se o fizesse? Ver-te-ia a observares-me na curta fracção de tempo em que te sustentasse o olhar tão seguro que chega a parecer frio. Sim, percebo agora, é frio, como raramente o é em olhos tão escuros.
É assim há anos, um jogo de gato e rato que se perpetua no silêncio. E se um dia…? ... E se um dia, esquecida da austeridade católica herdada de minha mãe, eu ignorasse que uma senhora não deseja, concede? Se quebrasse este aquário à força duma única palavra ou dum sorriso? O que aconteceria? Se uma borboleta que bate as asas na China provoca um tufão nos antípodas, o que poderá fazer o passo adiante que falta a um de nós?
Este jogo é tão antigo que o integrei na rotina quotidiana. A sedução de todos os dias nos dai hoje para que amanheçamos menos tristes. Eu começara por embirrar solenemente contigo. Aliás, confundira-te com outro, de má fama, que, pela mesma época, chegara à empresa onde trabalhava há anos. Seguiu-se que, desfeito o equívoco, me obstinei na antipatia: embora não apreciasse os executivos, todos impecavelmente vestidos de igual, aquela maneira descuidada de te vestires pareceu-me encenação de poseur, sobretudo quando às calças largueironas somavas um boné de pala, perfeitamente dispensável em edifício pouco exposto à luz solar. Vim a esquecer-te como só é possível num local onde, diariamente, centenas de pessoas conseguem cruzar-se sem se cumprimentar. Via-te sem te ver até ao dia aziago em que uma das minhas colegas decidiu apaixonar-se por ti à distância.
- Aquele?! Giro?! Estás doida?
A outra enaltecia-te os encantos – a presença forte, a curva do pescoço, os ombros largos, o cabelo denso, a maneira de acender o cigarro.
- Sim, talvez, mas vamos ao que interessa…
- Acontece, querida Ana, que ele não me liga a mínima. Acho que ele gosta é de ti.
- Estás mesmo doida.
Estaria? A ideia fez o seu caminho na minha imaginação. Dei por mim a alvoraçar-me secretamente à tua passagem, a preparar de véspera a toilette, a fazer-me notada, a fazer que me notasses. E notaste.
O nosso jogo adensou-se nos meses que se seguiram. Às vezes, a atracção adquiria a forma da hostilidade surda, totalmente alheia à ternura. Surgias e, nesse preciso instante, sentia-me a menina frágil que fora toda a vida. Desaparecias do meu horizonte e voltava a seguir o meu rumo tão bem delineado como sempre acontecera. Tinha tanto medo de te encontrar sem aviso que ficava agarrada à cadeira como se tomasse um pânico de morte.
Um dia houve em que me seguiste onde quer que eu fosse. Sozinhos no elevador, olhavas-me com essa insistência selvagem que te caracteriza e fui tomada de pânico. Um minuto, o minuto em que li todas as letrinhas pequenas do impresso que levava nas mãos, pareceu-me uma eternidade. A porta acabou por abrir-se para meu alívio, mas havia neste alívio o travo amargo das coisas não acontecidas. Se eu tivesse correspondido a esse olhar, em que zona remota do planeta teria acontecido o tufão?
A pequena cobardia não ditou o final desta, chamemos-lhe assim, relação. Os meses seguintes prolongaram-se do mesmo modo. Ninguém suspeitava. Talvez nem tu, pensava eu nos momentos que tanto mistério me alimentava as dúvidas. Mas a longevidade do teatro de olhares acabou por me alimentar o romantismo. Com a cabeça cheia de filmes, ponderei que, se tal atracção resistia para além dos vulgares prazos de validade destes fenómenos, era porque talvez fosses o tal do gostinho especial, a laranja amarga e doce, meu poema, aquilo a que a imprensa espanhola, sempre tão colorida, atribui o título de «príncipe azul». E se, assim fosse, só a minha timidez nos impedia de consumar tão risonho destino? Resolvi falar-te. Não foi uma declaração, não foi uma demonstração de coquetterie, apenas um gracejo que tivesse a arte de quebrar o aquário. Lembro-me que riste, mas não levantaste os olhos. Desta vez, contra o teu costume. Eu devia ter percebido imediatamente, mas, lamento, tardei uns dias a perceber que gostavas de andar em círculos no aquário e que gostavas de me ver reproduzir-te o movimento.
O teatro de olhares fechou o pano nesse mesmo dia. Não houve mais gestos esboçados, encontros furtivos que não o chegavam a ser, silêncios como campos minados. Agora apenas bastariam uns meses para que nos voltássemos a cruzar sem nos vermos. O mistério fora apenas o belo nome do nada.
4 comments:
Olha que dava uma pequena novela. Xicoração.
Da primeira vez fiquei sem fôlego, agora fiquei sem pinga de sangue, sem palavras não fiquei, senao não estaria a escrever-te.
Os momentos de incerteza em que os olhares podem ser multiplamente interpretados costumam ser os mais saborosos; quando acaba essa sedução e começa outra temos que nos moldar a novas formas de interpretação...às vezes resulta, outras não.
Resta-me dizer-te que gostaria de conseguir descrever assim de uma forma tão pura, tão bonita também um flirt, uma atracção...talvez daqui a uns tempos.
Um jogo de sedução, de flirt, escrito da maneira mais bela, que já algum dia li.
Parabéns
Muito obrigada, Maria Clarinda! Devolveu-me o sorriso. Beijinhos
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