Monday, October 10, 2005

foto de Gérard Castello-Lopes

Hora de virar páginas

... Porque há que deixar morrer para continuar, vida fora...

Adeus Português

Nos teus olhos altamente perigosos/
vigora ainda o mais rigoroso amor/
a luz dos ombros pura e a sombra/
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo/
à roda em que apodreço/
apodrecemos a esta pata ensanguentada que vacila/
quase medita/
e avança mugindo pelo túnel/
de uma velha dor/

Não podias ficar nesta cadeira/
onde passo o dia burocrático/
o dia-a-dia da miséria que sobe aos olhos vem às mãos/
aos sorrisos/
ao amor mal soletrado/
à estupidez ao desespero sem boca/
ao medo perfilado à alegria sonâmbula à vírgula maníaca/
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo/
em trânsito mortal até ao dia sórdido/
canino/
policial até ao dia que não vem da promessa/
puríssima da madrugada/
mas da miséria de uma noite gerada/
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo/
à pequena dor que cada um de nós/
traz docemente pela mão/
a esta pequena dor à portuguesa/
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces/
esta roda de náusea em que giramos/
até à idiotia/
esta pequena morte/
e o seu minucioso e porco ritual/
esta nossa razão absurda de ser

Não, tu és da cidade aventureira/
da cidade onde o amor encontra as suas ruas/
e o cemitério ardente/
da sua morte tu és da cidade onde vives por um fio/
de puro acaso/
onde morres ou vives não de asfixia/
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro/
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante/
que vai ser que já é o teu desaparecimento/
digo-te adeus/
e como um adolescente/
tropeço de ternura/
por ti

Alexandre O'Neill

7 comments:

said...

Há uns anos tive umas boas horas a olhar para essa foto a tentar descobrir onde seria esse lugar! E descobri!!
BJ

Alberto Oliveira said...

Os adeuses portugueses têm fama de deixarem para trás uma aura de saudade imensa.
O Alexandre também.

maria joão martins said...

As saudades do O'neill são imensas. Julgo que ninguém nos captou, no íntimo, no que perdura, tão bem como ele. «Dor mansa quase vegetal»? É horrível, mas é a nossa.

Patrícia Rocha said...

Amo o todo deste poema, cujas últimas linhas sempre me fizeram, e fazem!, estremer!

Excelente escolha, João. Tb tenho saudades do O'Neill...

Patrícia Rocha said...

Bloguerrata:

Estremecer, queria eu escrever! *risos*

maria joão martins said...

Para mim, este poema define a nação que somos, para o melhor e para o pior. Melhor só «Feira Cabisbaixa», o tal de «Ó Portugal se tu fosses só três sílabas/De plástico para ser mais barato»

Preciouzzz said...

lindo!!! amei!!!!