Tuesday, September 05, 2006

Obra-prima!

O que dizer sobre um filme (um livro, um quadro, uma peça musical…) que, à partida, integramos na muito exclusiva categoria das obras-primas? Como justificar a ousadia, sobretudo quando – como é o meu caso – se desconfia deste substantivo demasiado adjectivante, pelo que contém de excesso e o, que é pior, de definitivo? E, no entanto, persisto na intenção do título desta crónica: Volver, é uma obra-prima, a primeira que me foi dada a ver em cinema nos últimos anos, talvez desde o penúltimo filme de Almodóvar, o muito aclamado Hable con Ella.
Tenho uma predilecção particular pelo realizador espanhol? Admito que sim. Gosto muito da maneira única como sempre geriu a ténue linha que separa a tragédia extrema da comédia do absurdo, mas gosto ainda mais desde que passou a ocupar-se com maior atenção do lastro agridoce que o passado vai deixando nas vidas de todos nós. Fê-lo no seu filme anterior, Má Educação, em que, como estarão recordados, abordava a amarga herança que um jovem homossexual trouxera do seminário em que fora criado. Falou-se, na altura, de ajuste de contas de Almodóvar com a Igreja Católica, mas, como sempre acontece com o seu cinema, é impossível reduzi-lo a chave tão simplista.
Volver é, se quisermos, a outra face ou o corolário lógico de Má Educação. Raimunda (Penélope Cruz) e Sole (Lola Dueñas) são duas irmãs na «casa» dos 30 anos que se mudaram para Madrid depois de uma infância numa pequena aldeia de Castilla de La Mancha, por sinal, a localidade do país em que, por causa do vento leste, se regista maior número de casos de loucura. Os pais morreram abraçados durante um dos muitos incêndios que, uma vez mais por causa dessa estranha propensão para a ventania, fustigam a região. Movidas pela responsabilidade para com vivos e mortos, as duas deslocam-se regularmente à aldeia para limpar a campa dos pais, cuidar de uma tia velha e ouvir histórias de assombrações. A mais recente sugere que quem, na verdade, trata da senhora, cega e senil, é o espírito da irmã (mãe das duas), tão lesto na limpeza do casarão como no uso de uma bicicleta de ginástica.
Superstição ou não, a verdade é que a morta (fabulosa Cármen Maura) faz tudo isto e muito mais, incluindo regressar para resolver um passado que volta sempre, independentemente das lápides que o cobrem. Mais do que reclamar justiça, volve porque aprendeu que não vale esconder o lixo debaixo do tapete. Aos 57 anos (vão longe os anos loucos da movida madrilena), Almodóvar dedica-se, assim, com a sensibilidade e a inteligência que o caracterizam, ao tema das raízes e à criatividade de Deus (ou de algo por ele) no uso das suas linhas tortas. Já o esboçara em A Flor do Meu Segredo (uma sofisticada escritora de Madrid, em plena panne criativa e conjugal, regressa ao pueblo onde nasceu para não «sentir como uma cabra sem badalo») e também em Tudo sobre a Minha Mãe (onde uma mulher irremediavelmente dilacerada pela morte do filho viaja de Madrid para Barcelona, com o objectivo de ajustar contas com esse passado que talvez não volte mas magoa indefinidamente) e desenvolveu-o amplamente em Má Educação. Com Volver, o realizador procurou – assim o afirmou em diversas entrevistas durante a preparação do filme – reconstituir a Castilla de La Mancha da sua infância, onde nos pátios dos casarões, as vizinhas sussurram experiências com o sobrenatural, acompanhadas apenas pelo zunzum de leques freneticamente agitados. Fazem-no ainda hoje (como as mães antes delas e avós antes destas), mesmo que agora (como Almodóvar mostra num dos planos mais irónicos do filme) tenham de partilhar o espaço com netas adolescentes mais interessadas na troca de SMS’s do que em manifestações do oculto. Como boa parte da filmografia do cineasta, Volver é também a homenagem a uma Espanha eterna que subsiste nas «cores de Almodóvar» de que fala a canção de Adriana Calcanhoto e na vivacidade da linguagem das mulheres, não obstante todos os índices de modernização que hoje fazem do país uma potência em crescimento. Melhor ainda: como todos os artistas que mergulham sem complexos no que é local, Almodóvar sabe ser universal. Mais do que uma homenagem à Espanha eterna, Volver constitui uma exaltação do que há de eterno na Europa mediterrânica (a que Portugal pertence, pelo menos do ponto de vista cultural). Olhamos Raimunda, a bela morena a braços com o preço da sua sensualidade, e vemos as divas do cinema clássico italiano: Loren, Cardinalli e, sobretudo Ana Magnani, como Almodóvar nos confirma no remate do filme. Estão lá: no olhar magoado, na altivez do porte, no fazer das fraquezas força. Olhamos aquelas vizinhas e reencontramos as nossas avós, de negro vestidas como a moral católica mandava às viúvas, a desfiar histórias de pasmar, pela noite dentro. A uma obra-prima não basta a excelência técnica – é preciso que implique e envolva o espectador. E Volver não é outra coisa senão o filme de todos nós.

5 comments:

Thiago said...

Adorei esta tua crítica/crónica. Beijos grandes e obrigado por existires e partilhares comigo essa sensibilidade

Psipsina said...

Parabéns pelo texto e estou ansiosa para ver o filme.

maria joão martins said...

Muito obrigada a ambos. São lindos.

Maria Clarinda said...

Esta tua Critica/crónica, fez-me ir ao cinem pela 1ªvez depois de tudo o q passei...obrigada!!!!Adorei o filme!

maria joão martins said...

Olá, Maria Clarinda,
Então já valeu a pena escrevê-la. Mando-lhe um beijinho amigo.