Monday, August 01, 2005


Pygmaleon and Galatea,
Fábrica de Sèvres (1764-1773), depositada no British Museum, Londres

Pigmaleão

Pigmaleão Torres precisa desesperadamente dos outros – como caixas de ressonância, entenda-se. Tem o empenho de encontrar um lugar amável onde instalar o interlocutor. Este, lisonjeado, disponibiliza-se para ser seduzido. Ouve. Ouve e anui. Ouve e procura introduzir um comentário oportuno. Percebe que este se dilui no mar de palavras do outro e continua a ouvir enquanto fuma um cigarro. A cena repetir-se-á nas semanas seguintes, com uma regularidade que leva o interlocutor a interrogar-se se Pigmaleão não estará apaixonado por ele. E nós, frenéticos de coscuvilhice, com ele. Está-lo-á? Tudo indica que sim – os telefonemas prolongados; as pequenas lembranças; o olhar em alvo nos olhos do interlocutor quando se encontram noite dentro, num daqueles bares cujo ambiente proporciona intimidade à mais inócua das conversas. Ou dos monólogos porque o que, na verdade, se passava nesses encontros era um infindável debitar das impressões de Pigmaleão sobre a vida, a sociedade, a política, o cinema, a literatura… Whatever, o interlocutor sentia-se o mais beneficiado dos seres. Quando chegava à inevitável temática do amor e sexo, este acreditava ver confirmadas as suas suspeitas. E participava ainda com mais entusiasmo neste jogo de ilusões.
O que o interlocutor ainda não podia saber é que Pigmaleão Torres estava, de facto, apaixonado, mas apenas porque isso era o que lhe acontecia sempre que encontrava (ou julgava encontrar) uma caixa de ressonância. Ignorante dessa idiossincrasia, o outro ambicionou um destino maior e quis transformar o monólogo numa partilha. Pensou que, nessas noites de sussurros, podia expressar as suas próprias impressões sobre a vida, a sociedade, a política, o cinema, a literatura. Até sobre amor e sexo, se para tal lhe chegasse a coragem. Mas foi engano de alma ledo e cego.
No dia em que Pigmaleão descobriu, com horror, que o espelho mágico não cumpria a função, produziu-se um choque tão profundo quanto irreversível. Com o mesmo empenho que antes aplicara na sedução, decidia-se agora a estilhaçar o objecto que traíra as suas expectativas. Haveria de destruí-lo de forma tão cirúrgica que seria impossível reconstitui-lo sob que forma fosse.
Começou por enunciar, em tom paternalista, todos os defeitos graves do outro – era possessivo; azedo; desprovido de graça e dependente. O visado acreditou e pediu-lhe conselhos. Redimir-se-ia se tal lhes devolvesse o antigo enleamento. Por momentos, a insuperável vaidade de Pigmaleão quase cedeu à volúpia de só ele poder apontar o caminho da salvação, mas não tardou a recuar nesse propósito. Uma vez rebelde, sempre rebelde – o outro nunca seria uma caixa de ressonância minimamente aceitável. Queria partilhar… Mas o quê? Havia alguma coisa que se partilhasse?
E prosseguiu o seu esforço de destruição até ao ponto em que se tornou inevitável o confronto entre ambos – violento e vulgar. Quando finalmente conseguiram passar um pelo outro como se não se tivessem conhecido, puderam seguir em frente. O inábil aprendiz de Galateia soube, pelo menos, a que sabe uma desilusão e Pigmaleão Torres continua afincadamente em busca da caixa de ressonância perfeita – aquela que não o traia ou desiluda. A que beba as suas palavras como água duma fonte miraculada; a que não o interrompa com palpites e que o siga com a fidelidade duma sombra. A que lhe devolva tal e qual a imagem de si mesmo que tantos anos de trabalho custara a Pigmaleão.

5 comments:

Patrícia Rocha said...

Uau, temos música. E da boa! *piscar de olho*

Qto ao CD do Suba, tenho-o aqui. É só pedir! *hehehe*

Bejos.

maria joão martins said...

E um retrato. Publicidade enganosa, portanto.

Patrícia Rocha said...

Miss Scarlett!? *Patrícia coçando a cabeça*

maria joão martins said...

Veronica Lake.

Patrícia Rocha said...

Referia-me ao email! *gargalhada*