Wednesday, May 23, 2007


O craque encaixilhado

Recordo-o envolto numa nuvem de fumo, as pontas dos dedos amareladas pelos cigarros «Porto» que fumava incessantemente. Era assim o meu avô materno, Fernando de seu nome, morto aos 62 anos, um mês depois do 25 de Abril, quando eu ainda não sabia que coisa estranha era essa de perder alguém que ainda ontem nos carregara às cavalitas. Homem alegre, mas marcado pelo duro quotidiano do Portugal salazarista, criara as três filhas à custa de muita acrobacia orçamental e de um silêncio ressentido sobre qualquer assunto que, mesmo de leve, «cheirasse» a Política.
Este meu avô tinha, quando cheguei à sua vida, duas paixões maiores: os dois netos e o Benfica. Contemporâneo dos grandes feitos do clube nos Campeões Europeus, passava os seus melhores domingos no então recém-construído Estádio da Luz. Em tarde de maior empolgamento, chegou a casa determinado a pregar a foto de José Águas na parede da sala, entre os retratos de família. Ao que minha avó se opôs, imagino pelo que dela lembro, com uma determinação tão serena quanto inabalável. O retrato encaixilhado do craque foi guardado numa gaveta, mas meu avô remoía ainda no modo de expressar condignamente a sua paixão pelo «Glorioso».

Numa outra tarde chegou a casa com novidade mais consensual. Um cachorro de pata curta, a indicar que não tomaria maiores dimensões. Já trazia nome, informou. Que era – surpresa das surpresas – Benfica. O animal tão amorosamente designado cresceu em rafeirice e escassa simpatia. Sem que ninguém o instruísse para tal, atacava voluntariamente visitas e cobradores. Tinha, no entanto, um ódio de estimação, a cujos passos, no patamar, reagia, mês após mês. A fúria do animal atingia o auge quando, a medo, com as quotas por cobrar, o homem anunciava de onde vinha: «Benfica!» Sentindo-se provocado ao julgar ouvir o seu nome na boca de um desconhecido, o modesto canídeo adquiria então a raiva de um pittbull. A cena entrou rapidamente no anedotário dos sportinguistas locais, mas jamais beliscou a dedicação clubística da família. Só a minha avó, envergonhada pelo falatório da vizinhança, pensava que, mal por mal, mais valia ter ficado com o retrato de José Águas.

4 comments:

Maria Clarinda said...

Delicioso João!Adorei o teu Avô.
Jhs mil

António Ferra said...

belíssima história, linda crónica. E eu, que já tenho uns anitos, ainda me lembro de ver o José Águas a jogar, quando era miúdo. Curiosamente, no estádio das Antas, pois vivia lá próximo. Hoje vivo junto do estádio da Luz. Só que me deixei de futebóis. Não deixei foi o gosto por as histórias curtas.

Beijinhos

António

JPN said...

exactamente, belissima historia. e por coincidência, vejo aqui o antónio ferra a comentar. ora que momento bom!

maria joão martins said...

Muito obrigada pelos vossos comentários tão encorajadores. esta crónica nasceu como uma tarefa rotineira para o JL e talvez venha a originar uma narrativa mais longa. Enfim, veremos. Um abraço.